Por Leo Godinho

A matéria do UOL intitulada “Pesquisa Quaest: Brasileiros reprovam invasões aos Três Poderes” traz à tona dados de opinião pública que, em sua essência, não são surpreendentes. Como esperado, a esmagadora maioria dos brasileiros reprova qualquer ato de vandalismo ou depredação – atitudes que transcendem preferências políticas e atingem valores universais de ordem e respeito à coisa pública. No entanto, a análise da linguagem empregada pelo texto revela algo mais profundo: o uso reiterado e quase hipnótico do termo “ato golpista”.
O termo “ato golpista” aparece na matéria de forma repetitiva, muitas vezes sem qualquer aprofundamento sobre o que efetivamente caracterizaria um golpe no sentido clássico ou jurídico. Essa insistência gera redundância textual, comprometendo a fluidez da narrativa e, em um nível mais grave, obscurecendo a objetividade jornalística. Ao invés de uma análise equilibrada dos eventos, o texto parece aderir a um “mantra retórico”, onde a repetição do termo visa consolidar uma percepção uniforme nos leitores, independentemente de suas complexidades ou nuances.
A repetição excessiva de “ato golpista” no texto não é meramente um recurso estilístico. Do ponto de vista comunicacional, essa técnica frequentemente é usada para reforçar uma mensagem no inconsciente do receptor. Isso não é novidade em estratégias de propaganda: a repetição contínua de um conceito tende a fixá-lo como verdade consensual. Aqui, o problema é que essa insistência reduz os eventos do dia 8 de janeiro a uma narrativa pré-moldada, ignorando outras perspectivas e elementos que poderiam enriquecer o debate público.
Sim, os atos de vandalismo e depredação foram inaceitáveis. No entanto, descrever os eventos como “golpistas” implica um planejamento estratégico para derrubar o governo e suas instituições – algo que, à luz dos objetos apreendidos (estilingues, Bíblias e outros itens rudimentares), desafia tanto a lógica quanto os requisitos objetivos de um golpe de Estado. Em outras palavras, não se pode rotular estilingues como instrumentos de uma insurreição séria sem que isso soe risível.
Essa insistência narrativa também sustenta e legitima um inquérito que tem se mostrado problemático em diversos aspectos. Pessoas investigadas enfrentam processos que, para muitos especialistas, carecem de bases jurídicas sólidas. Há relatos de abusos, desrespeito às garantias constitucionais e uma abordagem persecutória que não só ceifou vidas, mas tem destruído famílias.
O uso reiterado do termo “ato golpista” alimenta a justificativa de medidas extremas, que mais se assemelham a punições coletivas do que à aplicação criteriosa da lei. Em um Estado Democrático de Direito, o respeito às normas jurídicas é essencial, mesmo – e principalmente – em momentos de crise. A narrativa do “golpe” parece servir como uma cortina de fumaça para desviar o foco de um sistema jurídico que, nesse caso, tem se mostrado seletivo e autoritário.
Ao aderir a essa retórica, a matéria ignora as consequências humanas dessa abordagem. Pessoas envolvidas, muitas sem histórico de violência ou provas concretas contra si, têm sido submetidas a condições degradantes, à destruição de suas reputações e, em casos extremos, ao desespero que culmina em tragédias. É imprescindível separar a reprovação legítima de atos de vandalismo do linchamento midiático e jurídico que transforma cidadãos em inimigos do Estado.
A reprovação aos atos de vandalismo do 8 de janeiro é um consenso natural entre cidadãos de bem. Porém, a insistência no termo “ato golpista” como narrativa central reduz a complexidade dos eventos a uma construção simplista e, muitas vezes, injusta. Essa abordagem não contribui para o fortalecimento da democracia, mas sim para sua fragilização, ao normalizar práticas jurídicas e midiáticas que desrespeitam direitos fundamentais e perpetuam o trauma social.
A imprensa, como guardiã da verdade, tem o dever de ir além do discurso fácil e questionar, com profundidade, as implicações de sua narrativa. Manter uma postura crítica não significa compactuar com o vandalismo, mas garantir que a justiça seja aplicada de forma justa, imparcial e humana.